A mensagem de J.
P., que designamos apenas por suas Iniciais, em virtude da comovente lição que
nos traz, foi recebida na noite de 13 de maio de 1954, no encerramento
de nossas tarefas.
Para elucidar
certas passagens desta comunicação psicofônica, é forçoso esclarecer que ele nos
visitara anteriormente, sendo socorrido pela doutrinação evangélica.
É curioso notar que
uma de nossas irmãs, elemento efetivo de nosso Grupo e esposa de um dos nossos
companheiros, meses antes da mensagem que aqui transcrevemos, revelava todos os
sintomas de uma gravidez aparente e dolorosa, tendo sido tratada
espontaneamente, em várias reuniões sucessivas, por um de nossos Benfeitores
Espirituais que, carinhosamente, a libertou, através de passes magnéticos, das
estranhas impressões de que se via possuída.
Com grande surpresa
para nós, viemos então, a saber, que o Espírito J. P. era o candidato ao renascimento
que não chegou a positivar-se.
Cremos sejam
necessárias as presentes anotações, não só para que a mensagem seja devidamente
aclarada, como também para estudarmos importantes Incidentes que podem ocorrer,
entre dois mundos, em nossa vida comum.
Com a inflexão de
quem chorava intimamente, o visitante assim se expressou, sensibilizando-nos a
todos:
13 de
maio de 1954!...
Há
precisamente sessenta e seis anos eram declarados livres todos os escravos no
território brasileiro.
E talvez
comemorando o acontecimento, determinam os instrutores desta casa vos fale algo
de minha história, de minha escura história, porquanto, em seus últimos lances,
ela se encontra de certo modo associada à obra espiritual de vosso Grupo.
J. P. foi
o meu nome em Vassouras, a fidalga Vassouras do Segundo Império.
Resumirei
meu caso, tanto quanto possível, porque, como é fácil perceberdes, não passo
ainda de pobre viajante da sombra, em árduo serviço na própria regeneração.
Em março
de 1888 fui convidado a participar de expressiva reunião da Câmara Vassourense por
meu velho amigo Doutor Correia e Castro. (1)
Cogitava-se
da adoção de medidas compatíveis com a campanha abolicionista, então na culminância.
Alguns
conselheiros propuseram que todos os fazendeiros do Município instituíssem a
liberdade espontânea, a favor do elemento cativo, com a obrigação de os
escravos alforriados prosseguirem trabalhando, por mais cinco anos
consecutivos, numa tentativa de preservação da economia regional.
Discussões
surgiram acaloradas.
Diversos
agricultores inclinavam-se à ponderação e à benevolência.
Entretanto,
eu era daqueles que pugnavam pela escravatura irrestrita.
Encolerizado,
ergui minha voz.
Admitia
que o negro havia nascido para o eito.
Nada de
concessões nem transações.
O senhor
era senhor com direito absoluto; o escravo era escravo com irremediável dependência.
Aderi ao
movimento contrário à proposta havida, e nós, os da violência e da crueldade, ganhamos
a causa da intolerância porque, então, Vassouras prosseguiu esperando as
surpresas governamentais, sem qualquer alteração.
De volta
ao lar, porém, vim, a saber, que a inspiração da providência sugerida partira inicialmente
de um homem simples, de um homem escravizado...
Esse
homem era Ricardo, servo de minha casa, a quem presumia dedicar minha melhor afeição.
Era meu
companheiro, meu confidente, meu amigo... Inteligência invulgar traduzia o
francês com facilidade. Comentávamos juntos as notícias da Europa e as intrigas
da Corte... Muitas vezes, era ele o escrivão predileto em meus documentários,
orientador nos problemas graves e irmão nas horas difíceis...
Minha
amizade, contudo, não passava de egoísmo implacável.
Admirava-lhe
as qualidades inatas e aproveitava-lhe o concurso, como quem se reconhece dono
de um animal raro e queria-o como se não passasse de mera propriedade minha.
Enraivecido,
propus-me castigá-lo.
E, para
escarmento das senzalas, na sombra da noite, determinei a imediata prisão de
quem havia sido para mim todo um refúgio de respeito e carinho, qual se me fora
filho ou pai.
Ricardo
não se irritou ante o desmando a que me entregava.
Respondeu-me
às perguntas com resignação e dignidade.
Calmo,
não se abateu diante de minhas exigências. Explicou-se, imperturbável e sereno,
sem trair a humildade que lhe brilhava no espírito.
Aquela
superioridade moral atiçou-me a ira.
Golpeado
em meu orgulho, ordenei que a prisão no tronco fosse transformada em suplício.
Gritei,
desesperado.
Assemelhava-me
a fera a cair sobre a presa.
Reuni
minha gente e as pancadas — triste é recordá-las! — dilaceraram-lhe o dorso nu,
sob meus olhos impassíveis.
O sangue
do companheiro jorrou, abundante.
A vítima,
contudo, longe de exasperar-se, entrara em lacrimoso silêncio.
E,
humilhado por minha vez, à face daquela resistência tranquila, induzi o capataz
a massacrar-lhe as mãos e os pés.
A
recomendação foi cumprida.
Logo
após, porque o sangue borbotasse sem peias, meu carrasco desatou-lhe os
grilhões...
Ricardo,
na agonia, estava livre...
Mas
aquele homem, que parecia guardar no peito um coração diferente, ainda teve
forças para arrastar-se, nas vascas da morte, e, endereçando-me inesquecível
olhar, inclinou-se à maneira de um cão agonizante e beijou-me os pês...
Não
acredito estejais em condições de compreender o martírio de um Espírito que
abandona a Terra, na posição em que a deixei...
Um
pelourinho de brasas que me retivesse por mil anos sucessivos talvez me fizesse
sofrer menos, pois desde aquele instante a existência se me tornou insuportável
e odiosa.
A Lei
Áurea não me ocupou o pensamento.
E quando
a morte me requisitou à verdade, não encontrei no imo do meu ser senão austero tribunal,
como que instalado dentro de mim mesmo, funcionando em ativo julgamento que me parecia
nunca terminar...
Lutei
infinitamente.
Um homem
perdido por séculos, em noite tenebrosa, creio eu padece menos que a alma culpada,
assinalando a voz gritante da própria consciência.
Perdi a
noção do tempo, porque o tempo para quem sofre sem esperança se transforma numa
eternidade de aflição.
Sei
apenas que, em dado instante, na treva em que me debatia, a voz de Ricardo se
fez ouvir aos meus pés:
— Meu
filho!... meu filho!...
Num
prodígio de memória, em vago relâmpago que luziu na escuridão de minhalma,
recordei cenas que haviam ficado a distância (2), quadros que a carne da Terra
havia conseguido transitoriamente apagar...
Com
emoção indizível, vi-me de novo nos braços de Ricardo, nele identificando meu próprio
pai... meu próprio pai que eu algemara cruelmente ao poste de martírio e a cuja
flagelação eu assistira, insensível, até ao fim...
Não posso
entender os sentimentos contraditórios que então me dominaram...
Envergonhado,
em vão tentei fugir de mim mesmo. Em desabalada carreira, desprendi-me dos braços
carinhosos que me enlaçavam e busquei a sombra, qual o morcego que se compraz
tão somente com a noite, a fim de chorar o remorso que meu pai, meu amigo, meu
escravo e minha vítima não poderia compreender...
No
entanto, como se a Justiça, naquele momento, houvesse acabado de lavrar contra
mim a merecida sentença condenatória, após tantos anos de inquietação,
reconheci, assombrado, que meus pés e minhas mãos estavam retorcidos...
Procurei
levantar-me e não consegui.
A Justiça
vencera.
Achava-me
reduzido à condição de um lobo mutilado e urrei de dor... Mas, nessa dor, não encontrei
senão aquelas mesmas criaturas que eu havia maltratado, velhos cativos que me
haviam conhecido a truculência... E, por muitos deles, fui também submetido a
processos pavorosos de dilaceração. (3)
Passei,
porém, a rejubilar-me com isso.
Guardava,
no fundo, a consolação do criminoso que se sente, de alguma sorte, reabilitado
com a punição que lhe é imposta.
A
expiação era serviço que eu devia à minha própria alma.
Se algum
dia pudesse rever Ricardo — refletia —, que eu comparecesse diante dele como alguém
que lhe havia experimentado as provações.
Lutei
muito, repito-vos!...
Sofri
terrivelmente, até que, certa noite, fui conduzido por invisíveis mãos ao lar
de um companheiro em cuja simpatia recolhi algum descanso...
Aí, de
semana a semana, comecei a ouvir palavras diferentes, ensinamentos diversos, explanações
renovadoras. (4)
Modificaram-sê-me
os pensamentos.
Doce
bálsamo alcançou-me o espírito dolorido. E, desse santuário de transformação,
vim, certa feita, ao vosso Grupo. (5)
Há quase
dois anos, tive o conforto de desabafar-me convosco, de falar-vos de meus padecimentos
e de receber-vos o óbolo de fraternidade e oração.
Mas
porque desejasse associar-me mais intimamente ao lar em que me reformava,
atirei-me apaixonadamente aos braços dos amigos que me acolhiam, intentando
consolidar mais amplamente a nossa afeição.
Queria
renascer, projetando-me em vosso ambiente... Para isso, busquei-vos como o
sedento anseia pela fonte... E tudo fiz para exteriorizar-me; entretanto, eu
não possuía forças para mentalizar as mãos e os pés!...
Se eu
retomasse a carne, seria um monstro e se concretizasse meu sonho louco teria
cometido tremendo abuso...
Além
disso, estaria na posição de um aleijado, simplesmente regressando do inferno
que havia gerado para si mesmo.
Nesse
ínterim, contudo, os instrutores de vossa casa me socorreram...
Auxiliaram-me,
sem alarde, noite a noite, e, graças ao Senhor, meu propósito foi frustrado.
Mas, se é
verdade que não pude retratar-me de novo, no campo da densa matéria, para
tentar o caminho de reencontro com Ricardo, recebi convosco, ao contato da
prece, o reajuste de minhas mãos e de meus pés.
Orando em
vossa companhia e mentalizando a minha renovação em Cristo, minha vida ressurge
transformada.
Agora,
esperarei o dia de minha volta ao campo normal da experiência humana, a fim de,
em me banhando na corrente da vida física, apagar o passado e limpar minhas
culpas, através do trabalho, com a minha justa escravização ao dever, para,
então, mais tarde, cogitar da suspirada ascensão.
Mas,
porque recompus minha forma, aqui estou convosco e vos digo:
—
Aleluia!...
— Viva a
liberdade!...
Louvo a
liberdade que me permite agora pensar em receber o bem-aventurado cativeiro da prova,
favorecendo-me por fim o galardão da cura!...
Amigos,
eis que nos achamos em 13 de maio de 1954!...
Para
minhalma, depois de 66 anos, raia um novo dia...
Para mim,
a luz não tarda!... a luz de renascer! E assim me expresso, porque somente na esfera
de luta em que vos encontrais como privilegiados tarefeiros, por bondade de
Nosso Senhor Jesus-Cristo, é que poderei encontrar o sol da redenção.
Agradeço-vos
a todos, recomendando-me feliz às preces de todos os companheiros, preces que
constituem vibrações de amor que ainda me empenho em recolher, como sementes de
renovação para o dia de amanhã que espero, em Jesus, seja enfim abençoado...
Que o
Senhor nos ampare.
Espírito J. P.
Instruções psicofônicas – psicofonia por Chico Xavier
1) O
comunicante refere-se a pessoa de suas relações íntimas, em 1888. — Nota do
organizador.
2) Ao contato
do benfeitor espiritual, a entidade sofredora entrou a lembrar-se de existência
anterior, em que a vítima lhe fora pai na experiência terrestre. — Nota do
organizador.
3)
Refere-se o comunicante a sofrimentos que experimentou nas regiões inferiores
da vida espiritual, sob a vingança de muitas das suas antigas vítimas revoltadas.
— Nota do organizador.
4)
Refere-se o comunicante ao culto doméstico do Evangelho, existente no lar do
nosso companheiro de quem se havia aproximado. — Nota do organizador.5) A
entidade reporta-se à primeira visita que fez ao nosso Grupo, quando foi
atendida por nossa casa, através da incorporação mediúnica, em 1952. — Nota do
organizador.
Grande aprendizado. Grata por receber tanta matéria que nos faz refletir e melhorar!
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